sábado, 29 de novembro de 2014

HORA E VEZ



Baseado na novela A hora e vez de Augusto Matraga do livro Sagarana de Guimarães Rosa.
 Ilustração de Poty.

No leilão daquela noite, depois que a gente direita foi saindo embora, só ficou a multidão enchaçada.
Nhô Augusto estava entre eles, com seus guarda-costas, quando chegou recado de Dona Dionóra:
Nho Augusto nem deixou o mensageiro acabar de falar:
- Desvira, Quim, e dá o recado pelo avesso. Eu lá não vou.
Você viaja, amanhã, com Siá Dianóra mais a menina.

Dianóra recebeu o recado em silêncio. 
Sentia pelo desleixo.
Contrariara e desafiara a família toda
para se casar com aquele doido sem detença. 
Aguentara sete anos. Agora, tinha aparecido outro.   

De manhã, com o sol nascendo, iniciaram a caminhada.
No início do segundo dia, bem no brechão do Bugre,
estava seu Ovídio Moura: -"Dianóra você vem comigo".
Pegou no colo a menina e falou:
-“Você volta Quim Recadeiro e fala com seu patrão que Dona Dionóra mais a menina vão viver comigo.”

"Quando chega o dia da casa cair – que com ou sem terremoto é um dia de chegada infalível - o dono pode estar:  de dentro ou de fora. É melhor estar de fora. Mesmo estando de dentro, mais vale todo vestido e perto da porta da rua".

Nho Augusto estava na cama, o pior lugar que há para se receber uma surpresa má. Mandou chamar seus capangas.
Voltou o Quim com nova desolação.
Os capangas tinham se ajustado, os quatro, um a um,
com o Major Consilva. Trocaram de lado.

Qualquer um caipira outro, 
sem ser Augusto Estêves, 
naqueles dois contratempos, 
teria percebido a chegada do azar,  
passaria umas rodadas sem jogar, 
fazendo umas férias na vida.

Nhô Augusto era couro ainda por curtir. Cresceu poeira. 
Major Consilva foi falando alto, risonho e ruim:
-“Tempo de bem-bom se acabou, cachorro de Estêves.”
A capangada pulou de porretes, derrubou o cavalheiro. 
Depois de muita pancadaria, de muitos ossos quebrados, 
ressoou a voz do Major:
-“Arrastem fora das terras...marquem a ferro e matem”.

Quando o ferro quente marcou a glútea direita,
Nhô Augusto, com um berro , reviveu, 
pulou no precipício onde ia ser jogado.
Deram-no por morto. Fincaram cruz no lugar.

O casal que morava no fundo do brejo,

achou-o, cuidou das quebraduras. 
Meses de fubá ralo, querosene nas feridas bichadas 
e muita reza curaram, de corpo e alma, Nhô Augusto, 
que passou a ser temente a Deus,  
adotou o casal de pretos como seus pais.

Um ano depois, ao iniciar caminhada pelo sertão, ajoelhou-se, 
abriu os braços em cruz e jurou:
- “Eu vou para o céu e vou mesmo, por bem ou por mal”.

Onde foram viver, de tão bom que ele era, 

ajudando a todo mundo e rezando sem parar, 
ganhou fama de meio doido, meio santo.

Tempos depois, oito homens, 
que de longe se via eram valentões, 
entraram no povoado.
O bando desfilou com o chefe no meio,
O povo com medo de falar e de ficar mudo.
Nhô Augusto foi fazer recepção.
Fez convite para arranchar em seu sítio.
Com todo o bando, Joãozinho Bem-Bem lá pernoitou.
No outro dia, na despedida, nos agradecimentos, 
Nhô Augusto foi convidado para integrar o bando.
- Ah, não posso! Mas nunca que eu hei de esquecer
 seu convite, meu amigo, meu parente,
Joãozinho Bem-Bem.

Passou mais tempo, muito mais, anos.

Quando, naquele dia, Nhô Augusto 
encostou a enxada na porta,
 não possuía ideia nenhuma do que ia fazer.
Dali a pouco, nada para retê-lo. 
Nhô Augusto estava madurinho de não ficar mais.

Saiu montado em  jumento que foi quem o dirigiu.
Um dia, e sempre chega um dia, 
entraram, os dois, no arraial do Rola-Coco.
No momento, uma agitação assustava o povo.
Alegrou-se ao saber que era seu amigo, 
seu compadre Joãozinho Bem-Bem

Nhô Augusto foi recebido com muita satisfação:
- Êta, mano velho... estamos de saída, 
mais falta ainda ajustar um devido... 
mataram o Juruminho...foi à traição...
o assassino caiu no mundo,...
a família vai pagar.
Enrolando palha de cigarro Joãozinho Bem-Bem continuou:
-  Gostei da sua pessoa. Já lhe falei e torno a falar: 
é convite como nunca fiz a outro! 
Olha...as armas do Juruminho estão aí, 
querendo dono novo... toque nelas.

Nhô augusto pegou as armas. 
Os olhos cresceram e brilharam.
Nisto, um breve estardalhaço à entrada da casa.  
Era um velho, o pai do assassino.
- “Ah, seu Joãozinho, não judia da minha família”.
- E quem é que teve piedade do Juruminho, baleado por detrás?
- “Então eu lhe peço que de ordem de matar só este velho". 
-Lhe atender não posso e com o senhor não quero nada. 
É a regra... um dos seus dois filhos tem que morrer e, 
as mocinhas são para os meus homens.

Nhô Augusto viu aí, a chegada da sua hora e vez. 
Dando, com certa dificuldade, tom calmo às palavras, falou:
- Não faz isso, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem.
O que você quer fazer é coisa que 
nem Deus manda, nem o diabo não faz. 
Estou pedindo como amigo.
A sua mão esquerda acariciava a lâmina da lapiana, 
enquanto a direita pousava no pescoço da carabina.

- “Pois pedido nenhum desse atrevimento 
eu até hoje nunca que ouvi nem atendi”.

Pois então... (e Nhô Augusto riu e era o riso do capiau 
ao passar a perna em alguém, no fazer qualquer negócio) 
meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem, é fácil...
mas tem que passar primeiro por riba de eu defunto.

A casa matraqueou que nem panela de assar pipocas.
Nho Augusto ferido e ferindo, gritou:
- A gostosura de fim-de-mundo. 
Para o céu eu vou nem que seja a porrete!

Três dos cabras correram. Outros três estavam mortos.
Foi seu Joãozinho Bem-Bem quem avançou.
Nhô Augusto talhou de baixo para cima, 
do púbis a boca do estômago, 
fazendo seu Joãozinho cair ajoelhado, 
recolhendo os seus recheios nas mãos.

Só então, Nhô Augusto, bambeou.  
O velho correu para acudir. 
Quis levá-lo para casa.
- “ Não... quero me acabar aqui, olhando o céu. 
Diga que meu nome é Nhô Augusto Estêves, das Pindaíbas”.
Depois, morreu.

2 comentários:

  1. Cybele Pimentel de Sá escreveu: -"Querido irmão, o trabalho está muito bom. Penso, no entanto, que pela extensão talvez não caia no agrado de todos os leitores. Guimarães é autor para ser lido no ir e vir dos olhos atentos às palavras que trazem mistérios nas entrelinhas. Tarefa para os " letrados" iniciados nas letras há algum tempo e com volumes lidos e " devorados" em longas noites de solidão e reflexão. Se quiser encarar sem se incomodar com número mais restrito de leitores, aconselho a continuar na empreitada. Nós, adoradores dele, vamos nos deliciar. Bjs. Parabéns!"

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  2. Ronaldo Ayres escreveu: -"Li e gostei! Ficou bom, conseguiu reduzir e abreviar, sem fugir ou deturpar do original. Ficou bem claro , é ler o poema e automaticamente liga-lo ao conto. Meus parabéns!

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