sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

CACO DE POTE


Foto de Sandra Kogut

         Baseado na novela "Campo Geral" do livro Corpo de Baile- Volume 1 de Guimarães Rosa.                                                                                            

Dito... você acha o Mutum feioso?
Acho não, Miguilim. É lugar muito bonito...
muito morro, muito pasto, muito boi.

Miguilim tinha oito anos.
Dito era menor, mas sabia com a certeza
que descarecia de duvidar.
Miguilim, mesmo quando sabia de ter visto,
ficava na dúvida, podia de ter olhado errado,
precisava contar ao Dito,
esperar o irmão recontar, para, então, acreditar.

Um dia em que não devia ter ido,
  Dito foi espiar o ninho da coruja.
Na volta, já encontrando com Miguilim,
pisou em caco de pote e cortou feio o pé.
Sangueira, corre-corre, chama a Mãe.

Passado o Deus acuda, repouso, 
rede na varanda 
pro Dito ficar olhando boi.  

Já estava quase sarado, pulando numa perna só,
quando o corte apostemou.
O pé piorou e piorou, de chorar de dor.
Miguilim não saia de perto da cama, chorava junto .

Um dia, as pernas de Dito cismaram
em ficar dobradas, de não esticar mais.
Depois, foi o pescoço que retesou.
Mais depois ainda, com os dentes travados,
 só podendo olhar para o teto,
falou dificultoso, de quase não entender:

- Chora não Miguilim.
De quem eu gosto mais é da Mãe e de você.
 A gente deve de ficar sempre alegre por dentro,
mesmo acontecendo toda coisa ruim.

Quis rir, esbugalhou os olhos e, depois, os fechou.
Miguilim arregalou os seus e começou a berrar.
Vieram ver, tiraram Muiguilim.
 O Ditinho tava indo para o céu.

6 comentários:

  1. Muito bom, aborda a tristeza e fatalidades. Pelos cacos da da vida...Miguilim perdeu seu amiguinho...

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  2. Pimentel Mariano escreveu: - "Miséria, ignorância, amor, companheirismo, fatalidade, morte, dor. Tudo retratado num universo linguístico próprio. Um misto de sentimentos. Gostei".

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  3. Núbia Nonato escreveu: -" Numa semana em que as lembranças afloram e me remoem de saudades, choro. Lindo!"

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  4. Maria Célia Marques escreveu: -" Orlando, Mariano se expressou muito bem sobre o poema. Núbia, como sempre, também. Ando chorando muito por ocasião do fim de ano e das festas. São as saudades dos que partiram, mas que estão comigo no presente; não uso o verbo no passado para falar deles. Agora, choro por Ditinho que foi para o céu tão novinho. A gente tem que ficar sempre alegre por dentro, mesmo acontecendo tanta coisa ruim. Vou teimar! Obrigada pelo presente do céu!"

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  5. Esse poema toca fundonosso coração.Omagino a tristeza do amiguinho ao ver o outro partindo...Amizade,,,carinho...presença...fidelidade...muitos sentimentos unidos...conforme fui lendo e imaginando a cena,as lágrimas foram teimosas e chorei...

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  6. cYBELE pIMENTEL ESCREVEU: -"Conheci Miguilim aos catorze anos.
    Chorei muito e ainda choro sempre que revisito Rosa.
    E agora, em pleno domingo, um novo reencontro em seu poema carregado de ternura, companheirismo, retratando um amor de irmãos que só os privilegiados conhecem.
    Os olhos de novo se encheram de lágrimas.
    Rosa deve estar feliz e papai também.
    Meu irmão, grata. Você é privilegiado. Teceu o seu poema com o falar roseano. Amei. Parabéns! Abraço-o com a ternura de sempre".

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