quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

AS CRACAS



Definiu:
Irá aproveitar a virada do ano para
livrar-se de todas as cracas.

Fez sua lista, 
embora soubesse ser desnecessário.
Todas as cracas eram, 
na verdade, uma só: Ele.

Pensou nas providências 
a serem tomadas:
Pular as sete primeiras ondas, 
a mais prazerosa.
O mar tão perto é tão lindo.

Flores para Iemanjá.
É a solução.
Doze rosas brancas
e mais uma única, 
vermelha, 
no meio do buquê.

Será um massacre.

O branco da paz 
haverá de vencer,
por compressão ou asfixia,
a rosa vermelha, 
paixão,
craca da qual
ainda não 
conseguiu se livrar.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

NATAL

             

É...
e hoje é noite de amor!

A leitoa pagou o pato,
o peru bebeu
pela primeira
e última vez.

O garrafão de vinho,
protagonista,
consumido,
foi esquecido.

Hum... Papai-Noel!
E quem crê?

Belo presente
ganhei eu;
uma noite inteira
sem você.


terça-feira, 20 de outubro de 2015

PRIMO LY




Só hoje,
 dez meses após o encantamento de Mary Joe,
 acordei, novamente,
capaz de escrever.

No intervalo, outras perdas...
 a mais sentida, faz poucas semanas,
ocorreu no finalzinho de noite de domingo,
e me chegou via WhatsApp:
“O primo Ly faleceu.”

Como pode o primo Ly, tão jovem,
médico cardiologista, enfartar?

Sou o primeiro e, consequentemente, o mais velho
de uma relação de primos que não é pequena.
Somos, precisamente, vinte e um.
 Nunca pensei na possibilidade de algum dos nossos, me anteceder.
 Com pouco mais de cinquenta,
foi-se o Ly, apelido carinhoso
 do nome forte, espartano, Licurgo.

A distância,
Ly morava em Santa Catarina,
não nos possibilitou convivência maior,
limitada, praticamente,
as festas da família que,
nos últimos trinta anos,
com as mortes de Nina e João do Cunha,
origem e foco de tudo e todos,
rarearam, consolidando os afastamentos.
Nos pouco mais de cinquenta anos,
talvez  nem meia hora de conversa, 
de convívio com Lycurgo.

Uma pena,
um equívoco do qual me penitencio.

Puxo pela memória.
Vejo-o, com mais precisão, ainda pequeno,
com uns cinco anos,
aproximando-se da mesa de festa, na hora do almoço,
no meio de intensa confusão e gritaria,
 com um prato na mão.

Com o linguajar ainda meio titubeante,
esticando o prato, pediu:
-“Bota qualquer coisa de qualquer coisinha pra mim.”

sábado, 16 de maio de 2015

MEUS MORTOS





A ânsia cessou.
Os olhos se estatelaram,
janelas para o nada. 
Acho que naquele instante, 
houve a morte cerebral 

Foi, então, 
que os vi entrando,
sem aviso prévio 
e sem convocação.

Um a um, em silêncio,
pela porta do quarto número três
do Hospital da Cruz Vermelha.

Na frente, Seu Camacho e Vovó Laura.
Depois Seu Homero e Dona Jacyra, pais da Bete.
Por fim, Tia Paulinha e meu pai, Rosemar Pimentel.
Todos já mortos.

Posicionaram-se em volta da cama,
esticaram os braços sobre minha mãe.

Moviam as mãos como se desatassem nós.

Com uma brisa perfumada e com a cama
transformada  em invisível maca,
foram por uma rampa, também invisível,
levando o que penso ser, 
a essência de minha mãe,
pelas beiradas do céu.

Foi assim que 
vi a transformação, 
o encantamento de Mary Joe.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

“FUZIL”





Teve vida singular

e a vivenciou

em toda a sua pluralidade.


Se não me fiz entender, detalho;

fez só o que quis,

e quis bastante.  

 Vivenciou tudo 

com toda a intensidade.

Sempre de bem com a vida,

sem receio,

tratou de ser feliz.

Generoso,decidido, 

foi um batuta.



Assim defini, 

em seu velório,

o amigo da adolescência,

Luis Carlos Cardoso de Sá, 

o “Fuzil”.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

SÃO FRANCISCO



Não falo do homem santo,
o dos pobres e oprimidos,
o que disse que é dando que se recebe,
o que afirmou que,
para viver é preciso morrer.

Pego gancho na finitude,
peço benção e proteção,
pois neste controverso assunto,
bebo de todas às águas,
entre elas, as do povoado de Piaçabuçu,
banhado, desde sempre,
pelo Rio São Francisco,
que é de quem, na verdade, quero falar.

O Velho Chico...
sempre explorado e maltratado,
com cinco garrotes em seu curso,
ferido gravemente
com a transposição de suas águas,
tem a metástase mais visível,
em sua parte mais baixa,
nas cercanias da sua foz;
onde o rio não é mais rio,
onde o rio já virou mar.

O Velho Chico
não é mais o aríete
que desvirginava,
com vigor e mansuetude,
penetrando fundo,
as águas do mar.
Tiraram a virilidade do rio.

Meu Santo São Francisco de Assis:
agora é com o senhor que vou falar;
sei que é preciso perdoar 
para  ser perdoado,
mas... até quando?


sábado, 14 de março de 2015

A PISCINA DO BTC




Entro na água morna da piscina do Tênis,
reconciliando relação interrompida há trinta anos.

Ninguém...só eu na piscina de água cristalina.

Deixo-me flutuar, corpo quase todo submerso.
Acima da água, só parte do pescoço e a face.

Olhos fechados, não mais um simples homem,
agora, alguma coisa inexplicável e em êxtase.

Lentamente abro os olhos 
e me deslumbro, apequenado, 
com a imensidão do céu azul, 
com o branco das nuvens, 
o dourado do sol.

Já não apenas flutuo...levito...
levanto voo....
afasto-me da Terra,
perdido em delírios 
na imensidão cósmica,
transmutado 
em imaginário aquastronauta.

segunda-feira, 2 de março de 2015

O ENCANTAMENTO DE MARY JOE


                                         Para minha irmã Cybele. 

Maria Célia Marques poetizou:

“Mary Joe, no domingo de carnaval,
pediu passagem e passou para sempre”.

É, mas não foi assim, sem mais nem menos.

Mary, que foi sempre um “general”,
exigiu um ritual, toda uma preparação anterior.

Convocou a presença da filha tão amada,
Cybele, companheira de sempre e apoio em tudo,
para passarem juntas a noite; uma despedida?

Noite em claro, conturbada, de dores e delírios:
-“Precisamos fazer um bolo para o Rosemar”
-“E os meus pais? Estão atendendo bem a eles”?

Depois, uma ambulância, um quarto de hospital.
          Na cama, já no soro, comigo em pé a seu lado.
apoiou-se em meu braço esquerdo, 
projetou seu corpo para um abraço, com o qual,
suponho, em último afago, tenha se despedido de mim.

Com a ajuda do oxigênio, aquietou-se.
Parecia dormir... tranquilizou a todos nós.
Pouco depois, a afirmativa hesitante da neta Bianca:
-“Pai...acho que a vó parou de respirar”.

Mary havia se encantado,
foi rever os de um passado tão querido,
livrar-se das limitações que a idade lhe impunha.

Em uma lufada de vento, foi ser, nova e plenamente,
Maria José Andrade Pimentel.



quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

NA VARANDA DE MARY JOE


                                           Para Tatiana Pimentel

O finalzinho de tarde,  céu em trovões,
prenunciava aguaceiro... temporal.

Era quase hora de visitar Mary Joe.
Antes que a chuva caísse, antecipei-me.

Já dentro de sua casa,
peguei as mãos de Mary, as duas,
e a conduzi andando, eu de costas,
- que temeridade! - até a varanda.

-Vamos ver a chuva chegar, justifiquei.

Mary parece ter gostado da novidade;
foi leve, dócil, amigável, criança sorrindo.

Sentamos e revirei o passado.

Relembrei os anos de férias em Muriqui,
das festas na casa de seus pais,
meus avós João do Cunha e Nina, 
depois, nas que ela passou a fazer para a família,
quando seus pais se encantaram.

Tudo contado com gesticulações interpretativas,
voz alta, sentando, levantando.

Durou quase hora minha teatralização,
 tempo do céu pacificar, da chuva amainar.
Tempo, também, de dizer: - Amanhã tem mais.

Mary sorrindo:

“Obrigado por vir aqui...
 trazer lembranças tão boas...
isso é família ...é amor...
um cuidando do outro.
Gosto muito de você"

Só tive forças para dizer:- Eu também.


sábado, 31 de janeiro de 2015

O ESPELHO



"Espelho, espelho meu". 
"Existe alguém mais bonito do que eu"?

É objeto mágico, o mais mágico entre todos.

Já nem falo dos espelhos dos contos de fada.
Falo do espelho comum, 
do espelho do dia-a-dia,
do espelho do seu guarda-roupas,
do seu armário de banheiro.

Falo da lâmina de vidro, 
metalizada em seu lado  posterior,
e cuja face anterior reflete a nossa imagem.

Como é generoso, 
como é mágico o espelho no qual nos vemos, 
desde a mais tenra idade e onde estamos, 
apesar das décadas passadas,
sempre jovens e bonitos.

Se há discrepâncias, se algo não nos agrada, 
um movimento da cabeça, um ângulo mais favorável, 
e pronto: lá estamos nós, bonitos, jovens.

É um objeto mágico que me faz muito feliz
e ao qual sou infinitamente grato.
Penso que, tão generoso quanto o espelho, 
só os nossos amigos do "face":
"Linda...Poderosa...Gata...Maravilhosa"


Já as fotos...meu Deus do céu!
Livre-me e poupe-me das fotos.
É impiedosa, carrasco que exibe, 
sem nenhum retoque, sem carinho,
sem generosidade, sem dó nem clemência,
o que nos surpreende e agride,
 e o que não aceitamos seja a nossa imagem.

Resta-nos, graças a Deus,
um salvador e instantâneo recurso:
deleta...deleta...deleta.



sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

O PACIFICADOR



Baseado no conto "Tarantão, meu patrão", de Guimarães Rosa, do livro "Primeiras estórias"


Era um homem velho, 
caduco, de nome Dinis.
No mais perto da verdade,
quase um moribundo.
Fora levado à fazenda
para não vexar os parentes.
Cercaram-no de conforto,
de gente preparada para cuidar.
O velho Dinis, agora
por estar atarantado,
era chamado de Tarantão.

Naquele dia, ainda madrugada,
em caduquice inusitada,
Tarantão arreou cavalo.

O cuidador principal,
acordado as pressas,chegou. 
Tarantão definiu:
-“Menino, hoje é sério demais para você. Fique fora”.

Pelo peso da palavra percebeu
que Tarantão estava em tempo de guerra.
Ia matar o sobrinho-neto,
o doutor Magrinho, médico que o tratava.

Já na sela, pronto para fazer e acontecer,
não deu ao tratador, outra alternativa.
Em dia de Sancho Pança,
pegou montaria, foi atrás de Tarantão,
que calçava botas: uma  preta e a outra marrom.
 Na mão do braço direito, portava faca de mesa.

“ Vamos direto pegar o Magrinho.
Hoje eu acabo com aquele médico”.

Durante a andança, 
convocou quem encontrava,
e não faltou quem aceitasse o convite.

Já no arraial do Breberê,
quando ouviram foguetório de festa local,
Tarantão parou e, para a comitiva,
que já era de cinco, explicou:
-“Tão me saudando. 
Sabem que sou matador”.

Quando chegaram à cidade do doutor,
  era uma cavalaria de treze.
Foram direto para a "casa grande".

Encontraram a família em festa.
Batizado da filha do doutor Magrinho. 
Todos se assombraram ao ver Tarantão.
Como teria adivinhado o dia, 
a hora justa da festa?

Para os parentes, surpresos e em remorsos,
Tarantão ergueu o braço.
Cabelos e barbas brancas.
  No meio, o azul 
daqueles seus grandes olhos.

-“Eu peço a palavra”

Era tudo um só espanto!

Voz portentosa, sem paradas,
falou sem que nada se entendesse...
baboseiras das quais ninguém sabia,
ideias tortuosas, esquecidas ou mal lembradas.
Falou, falou, até que, porque quis, parou.

Os parentes o aplaudiram, 
se abraçaram,
 saudaram-no como a alguém 
muito querido e deram-lhe 
a cabeceira da mesa.

O velho de tudo provou,
bebeu e comeu.
 No fim da festa, pacificado, 
fez cavalgada de volta

Na outra manhã, da sua cama,
não se levantou.
 De olhos azuis escancarados,
com sorriso nos lábios,
Tarantão havia se "encantado".