sábado, 31 de janeiro de 2015

O ESPELHO



"Espelho, espelho meu". 
"Existe alguém mais bonito do que eu"?

É objeto mágico, o mais mágico entre todos.

Já nem falo dos espelhos dos contos de fada.
Falo do espelho comum, 
do espelho do dia-a-dia,
do espelho do seu guarda-roupas,
do seu armário de banheiro.

Falo da lâmina de vidro, 
metalizada em seu lado  posterior,
e cuja face anterior reflete a nossa imagem.

Como é generoso, 
como é mágico o espelho no qual nos vemos, 
desde a mais tenra idade e onde estamos, 
apesar das décadas passadas,
sempre jovens e bonitos.

Se há discrepâncias, se algo não nos agrada, 
um movimento da cabeça, um ângulo mais favorável, 
e pronto: lá estamos nós, bonitos, jovens.

É um objeto mágico que me faz muito feliz
e ao qual sou infinitamente grato.
Penso que, tão generoso quanto o espelho, 
só os nossos amigos do "face":
"Linda...Poderosa...Gata...Maravilhosa"


Já as fotos...meu Deus do céu!
Livre-me e poupe-me das fotos.
É impiedosa, carrasco que exibe, 
sem nenhum retoque, sem carinho,
sem generosidade, sem dó nem clemência,
o que nos surpreende e agride,
 e o que não aceitamos seja a nossa imagem.

Resta-nos, graças a Deus,
um salvador e instantâneo recurso:
deleta...deleta...deleta.



sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

O PACIFICADOR



Baseado no conto "Tarantão, meu patrão", de Guimarães Rosa, do livro "Primeiras estórias"


Era um homem velho, 
caduco, de nome Dinis.
No mais perto da verdade,
quase um moribundo.
Fora levado à fazenda
para não vexar os parentes.
Cercaram-no de conforto,
de gente preparada para cuidar.
O velho Dinis, agora
por estar atarantado,
era chamado de Tarantão.

Naquele dia, ainda madrugada,
em caduquice inusitada,
Tarantão arreou cavalo.

O cuidador principal,
acordado as pressas,chegou. 
Tarantão definiu:
-“Menino, hoje é sério demais para você. Fique fora”.

Pelo peso da palavra percebeu
que Tarantão estava em tempo de guerra.
Ia matar o sobrinho-neto,
o doutor Magrinho, médico que o tratava.

Já na sela, pronto para fazer e acontecer,
não deu ao tratador, outra alternativa.
Em dia de Sancho Pança,
pegou montaria, foi atrás de Tarantão,
que calçava botas: uma  preta e a outra marrom.
 Na mão do braço direito, portava faca de mesa.

“ Vamos direto pegar o Magrinho.
Hoje eu acabo com aquele médico”.

Durante a andança, 
convocou quem encontrava,
e não faltou quem aceitasse o convite.

Já no arraial do Breberê,
quando ouviram foguetório de festa local,
Tarantão parou e, para a comitiva,
que já era de cinco, explicou:
-“Tão me saudando. 
Sabem que sou matador”.

Quando chegaram à cidade do doutor,
  era uma cavalaria de treze.
Foram direto para a "casa grande".

Encontraram a família em festa.
Batizado da filha do doutor Magrinho. 
Todos se assombraram ao ver Tarantão.
Como teria adivinhado o dia, 
a hora justa da festa?

Para os parentes, surpresos e em remorsos,
Tarantão ergueu o braço.
Cabelos e barbas brancas.
  No meio, o azul 
daqueles seus grandes olhos.

-“Eu peço a palavra”

Era tudo um só espanto!

Voz portentosa, sem paradas,
falou sem que nada se entendesse...
baboseiras das quais ninguém sabia,
ideias tortuosas, esquecidas ou mal lembradas.
Falou, falou, até que, porque quis, parou.

Os parentes o aplaudiram, 
se abraçaram,
 saudaram-no como a alguém 
muito querido e deram-lhe 
a cabeceira da mesa.

O velho de tudo provou,
bebeu e comeu.
 No fim da festa, pacificado, 
fez cavalgada de volta

Na outra manhã, da sua cama,
não se levantou.
 De olhos azuis escancarados,
com sorriso nos lábios,
Tarantão havia se "encantado".


quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

O VELÓRIO

Baseado no conto "Os irmãos Dagobé" do livro Primeiras estórias de Guimarães Rosa.


Eram quatro os irmãos Dagobé.
O mais velho, Damastor,
fascínora, arrastava os demais,
fazia dos mais novos, fama de ruins.

Sem sabida razão,
implicara com Liojorge,
moço pacífico e bom,
de quem resolveu cortar a orelha.
Quando apareceu, com punhal na mão,
o rapaz, que arranjara uma garrucha,
despejou-lhe certeiro tiro no peito.
É a causa de estarmos agora,
no velório do Damastor Dagobé.

O povo, quase todo, apesar da chuva,
por bisbilhotice ou medo, veio fazer as devidas honras,
mas, o que queriam mesmo, era ver a hora da vingança.

Liojorge, comentavam,
já era, irremediavelmente, um morto.
Os irmãos, no velório, fazendo as honras,
pareciam alegres, estavam quase felizes.
Achavam que os irmãos antegozavam a vingança.
Ninguém, ali, daquilo tinha dúvida.
O matador era um, antecipadamente, defunto.

Gente mais chegada,
trouxe recado para Doricão Dagobé,
o mais velho e agora o líder dos irmãos.

O Liojorge mandara dizer
que matara com respeito,
só por não ter como não fazer.
Pedia autorização para ir ao velório.

Entre cafezinhos, cachaça e pipoca,
o povaréu não acreditava no que ouvia.
Então ele não sabe, que presente o matador,
torna a sangrar o morto matado?

O que ninguém não podia acreditar, aconteceu;
Doricão disse: -“Que viesse...depois do caixão fechado”.

O que se comentava é que era armadilha.
Era chegar e ser fuzilado pelos três.

Quando se fechou o caixão, cochichavam:
Já, já ele vem. De fato chegava.
O povo se arredou, temia bala perdida.
Liojorge saudou os três e se postou
ao lado de uma das alças do caixão.
A chuva que caiu a noite inteira,
 como em respeito, fez uma pausa.

O importante enterro saiu.

No cemitério, descido o caixão,
jogada a terra e o cal do finalmente,
não ficou ninguém perto de Liojorge.
Era, pelo menos pensavam, a hora da morte.

Os dois irmãos  ladeavam Doricão.
O povo todo de olhos esbugalhados,
esperando o puxar das armas que não houve.
Doricão, para Liojorge e para todos, falou:
“Se recolham. Acabou...nós vamos mudar da cidade.
Meu saudoso irmão é que era um diabo”.

Assim que o enterro se desfez, a chuva voltou a cair.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

MEU AMIGO



Baseado no conto FATALIDADE do livro “PRIMEIRAS ESTÓRIAS” de João Guimarães Rosa. 


Era delegado de polícia
e de nome Meu Amigo.

Exercitava tiro em seu quintal,
quando homem baixo, 
com ar e traje de caipira o procurou.

Era Zé Centeralfe, 
do arraial do Pai-do-Padre,
onde a marca da autoridade estava em falta.
Era a razão e o motivo da visita.

Era feliz até que foi infernar lá,
um desordeiro que botou olho na sua mulher.

Meu Amigo interrompeu:
-“É um Herculinão cujo sobrenome Socó”?

Confirmou e representou:

Para não estropiar a lei, 
mudou-se com a mulher.

O biltre não tardou 
em aparecer no novo arraial.

Fugiram novamente, 
de lá para cá,
 que é cidade de Delegado.
 Viera dar parte.  

O encapetado veio nos rastros.

"Eu quero é a lei", disse Centeralfe

Meu Amigo levantou-se, 
remexeu em suas armas,
escolheu uma, 
verificou o tambor cheio
e a deixou em lugar destacado.

Voltou olhando para Zé Centeralfe.

Vagarosamente, 
desviou rosto e o olhar
para a arma que manuseara.
Voltou, novamente, 
os olhos para o caipira,
 depois, para a arma, 
como que a o puxar à lição.

O outro entendeu a chave do jogo,
arregalou os olhos, e disse: -“Aaah!!!” .


Assim, se foi Zé Centeralfe.

Meu Amigo, a cavalo, 
um pouco atrás o seguiu.

De repente, 
lá vinha o malígno.

Meu Amigo fez fogo.

Com algo entre os olhos,
o falecido Herculinão arriou.

Três haviam tirado a arma,
só dois tiros foram ouvidos.
Herculinão não teve tempo... 
foi o mais lento.

Uma outra bala, a primeira,
a do Centeralfe, 
acertou-lhe em cheio o coração.

Meu Amigo, 
sendo fatalista, pensou:

“A vida de um ser humano,
entre outro seres humanos é impossível.
O que vemos, é apenas milagre,
salvo melhor raciocínio”.

Apontando para o defunto, disse:
-"Resistência à prisão..."

sábado, 3 de janeiro de 2015

CAMINHANDO NO ITAPOÃ




É na travessia da ponte 
o início da magia.
Sob os meus pés, 
o Rio Paraíba do Sul.
No horizonte, 
o verde da ilha encantada.

Lá, 
a caminhada não envolve, apenas,
músculos e articulações.
É mais...é muito mais.

É a oxigenoterapia,
do ar purificado pelas árvores,
umidificado pelas águas do rio.

É a ótica terapia:
as corruíras, o urubu soberano, as lagartas,
os canários da terra... tão amarelinhos,
as capivaras, as garças, as maritacas,
os pardais, as rolinhas e o sabiá.

Tudo entre mangueiras, flamboyant,
coqueiros, pinheiros, bambuais e,
em outro patamar, 
os fícus majestosos.

Inicia-se a psicoterapia.
O isolamento e o silêncio,
induzem à introspecção.
A mente ganha sonoridade, 
fala-se sozinho.

Aí, é Deus e o Diabo.

Diz-se o que não se diria
 a um psiquiatra,
mesmo depois 
de vinte anos de análise.

Passam-se os sessenta minutos.
A caminhada já cumpriu o seu papel.

Na ponte, na volta, 
no alto o azul do céu.
 Dentro de mim,
o branco da paz.