quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

O VELÓRIO

Baseado no conto "Os irmãos Dagobé" do livro Primeiras estórias de Guimarães Rosa.


Eram quatro os irmãos Dagobé.
O mais velho, Damastor,
fascínora, arrastava os demais,
fazia dos mais novos, fama de ruins.

Sem sabida razão,
implicara com Liojorge,
moço pacífico e bom,
de quem resolveu cortar a orelha.
Quando apareceu, com punhal na mão,
o rapaz, que arranjara uma garrucha,
despejou-lhe certeiro tiro no peito.
É a causa de estarmos agora,
no velório do Damastor Dagobé.

O povo, quase todo, apesar da chuva,
por bisbilhotice ou medo, veio fazer as devidas honras,
mas, o que queriam mesmo, era ver a hora da vingança.

Liojorge, comentavam,
já era, irremediavelmente, um morto.
Os irmãos, no velório, fazendo as honras,
pareciam alegres, estavam quase felizes.
Achavam que os irmãos antegozavam a vingança.
Ninguém, ali, daquilo tinha dúvida.
O matador era um, antecipadamente, defunto.

Gente mais chegada,
trouxe recado para Doricão Dagobé,
o mais velho e agora o líder dos irmãos.

O Liojorge mandara dizer
que matara com respeito,
só por não ter como não fazer.
Pedia autorização para ir ao velório.

Entre cafezinhos, cachaça e pipoca,
o povaréu não acreditava no que ouvia.
Então ele não sabe, que presente o matador,
torna a sangrar o morto matado?

O que ninguém não podia acreditar, aconteceu;
Doricão disse: -“Que viesse...depois do caixão fechado”.

O que se comentava é que era armadilha.
Era chegar e ser fuzilado pelos três.

Quando se fechou o caixão, cochichavam:
Já, já ele vem. De fato chegava.
O povo se arredou, temia bala perdida.
Liojorge saudou os três e se postou
ao lado de uma das alças do caixão.
A chuva que caiu a noite inteira,
 como em respeito, fez uma pausa.

O importante enterro saiu.

No cemitério, descido o caixão,
jogada a terra e o cal do finalmente,
não ficou ninguém perto de Liojorge.
Era, pelo menos pensavam, a hora da morte.

Os dois irmãos  ladeavam Doricão.
O povo todo de olhos esbugalhados,
esperando o puxar das armas que não houve.
Doricão, para Liojorge e para todos, falou:
“Se recolham. Acabou...nós vamos mudar da cidade.
Meu saudoso irmão é que era um diabo”.

Assim que o enterro se desfez, a chuva voltou a cair.

3 comentários:

  1. Cybele Pimentel Sá escreveu: "Querido irmão, ao ler o seu Velório, lembrei-me da citação roseana que me parece enquadra-se bem com o seu texto: " Por enquanto, que eu penso, tudo quanto há neste mundo é porque se merece e carece. Antesmente preciso. Deus não se comparece com refe, não arrocha o regulamento. para quê? deixa - bobo com bobo - um dia , algum estala e aprende: esperta. Só que às vezes, por mais auxiliar, Deus espalha, no meio, um pouquinho de pimenta".

    ResponderExcluir
  2. Mesmo tendo conhecimento sobre o conto, me foi narrado por você. Fiquei preso a obra em verso. Muito bem reduzido, sem fugir do original. Ao ler este poema, percebe-se o pensamento dos irmãos Dagobé. A morte do mais velho libertou os mais novos, pois ficou provado na atitude durante o velório e na decisão de se mudarem de cidade. Os demais eram de boa índole, o mais velho um demônio. Gostei muito !

    ResponderExcluir
  3. Núbia Nonato escreveu: -"Ninguém gosta de ditadura, de mandos e desmandos, de ser delineado por uma caricatura, uma imagem que nem de longe faz jus a sua alma. O acaso trouxe a redenção. Bem narrado, amarra o leitor. Muito bom poeta."

    ResponderExcluir