domingo, 28 de dezembro de 2014

SEZÃO



Ilustração de Arlindo Daibert
Baseado no conto SARAPALHA do livro Sagarana de Guimarães Rosa.


Argemiro deixou sua fazenda e foi morar
 com o primo Ribeiro, ainda em lua de mel,
para plantar à meia, o arroz.

Foi há mais de sete anos.

Naquele tempo, a malária, era coisa de lugares distantes.
- "Talvez que até aqui ela não chegue...chegou".
-"Talvez que para o ano ela não volte...voltou".
 Os moradores morreram ou se foram. 
A vila ficou como que assombrada.

Três quilômetros para cima, resistiu uma fazenda
envelhecida, sem trato, com três moradores:
uma negra velha, que cozinha e ajeita as coisas
e dois homens encaveirados.

Todos os dias, uma coisa só: 
esperar a febre chegar, 
sentados juntos, 
esquentando sol.

Ribeiro é o que mais parece um defunto.
Com olhar desajuizado, fala:
- Esta noite sonhei com ela, 
bonita como no casamento.

- "Primo Ribeiro...desde que ela fugiu 
você nunca falou nela"!

- É que minha morte está chega-não-chega.
Com a indesejável tão perto, resolvi desabafar.

- "Eu também senti muito".

-Eu sei, primo Argemiro. Você tem bom coração.
Só três anos de casados... não tenho raiva, só saudade.
Chorei escondido, não tenho mais vergonha de contar.

O febrão chega sempre e em hora certa.
Primeiro, no primo Ribeiro que já se deita no chão.

Argemiro, aproveita a inconsciência de Ribeiro
e, libera pensamentos aprisionados:

- "Ela era tão bonita! Quando fugiu...que baque.
Nunca tive coragem de revelar-lhe o meu amor.
Se o fizesse, talvez fugisse comigo.
Vim para a fazenda só por causa dela".

- Primo Argemiro...ajuda eu levantar.
Variei muito? Falei bobagem?
Nem sei o que seria de mim sem você.
Nem irmão, nem  filho podia ser tão bom.

- "Primo Ribeiro...já que você falou em morte,
vou fazer confissão de culpa:
- Eu também gostava dela"...

Ribeiro arregalou os olhos...
 - Veio morar comigo por causa dela?

- "Perdoa, primo Ribeiro, nem ela ficou sabendo".

- Volta para as suas terras.
Não quero mais ver sua cara.

Argemiro se levantou e foi indo.
Os primeiros calafrios chegaram.
Agora era a vez do seu ataque.
Já perto do que sobrou da porteira,
 fechou os olhos para lembrar melhor da festa.
Foi a primeira vez que viu Luisinha.
Foi paixão instantânea, definitiva, imortal.
Soube, então, que era a noiva do Primo Ribeiro.
Respeitou, nunca tentou nada, só quis morar perto,
poder olhar todos os dias.
O frio aumentava, a tremedeira também.
De repente, achou tudo muito mais bonito. 
Quem sabe Luisinha se arrependeu e esta voltando?

Deitou-se, sorriu, fechou os olhos, e se foi.

6 comentários:

  1. Cybele Pimentel de Sá, escreveu:-"mais uma recriaçäo sobre uma das novelas de Guimarães. Contado assim, a leitura vem com o entendimento fácil, mas nem por isso menos poético. Os leitores, de imediato, colavam-se ao lado do primo sofrido com a paixão recolhida. Amor tão sublime que se contenta só com o " estar perto". Uma beleza. Para ele o repúdio de primo foi o golpe mortal que a maleita não conseguiu desferir. Parabéns!

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  2. Ronaldo Ayres escreveu: -"Ela era tão bonita! Quando fugiram...que baque. Nunca tive coragem de reverlar-lhe o meu amor. Se o fizesse, talvez fugisse comigo. Vim para a fazenda só por causa dela... Achei este trecho muito bonito, mas todo o poema, do início ao final é sublime, nos encanta e nos leva a entregar-nos a fantasias e devaneios. O conto esta ali, todo ele , não há como se distanciar, mas, a poesia veio para acentuar!"

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  3. Maria Célia Marques escreveu: -"Orlando, tão bonito! Argemiro, apaixonado, deixou-se ficar por perto para, apenas, poder olhar Luisinha todos os dias. De amor encantado, “encantado” ficou".

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  4. Núbia Nonato escreveu: - "Inseri-me na paisagem do poema. Observei toda a cena, a decrepitude da moradia com o capim já alto. A negra num tamborete num canto da cozinha olha pela janela com a cabeça no nada, esperar a morte há muito deixou de ser uma sentença. A paixão que ressuscita na memória dos desvalidos colore o cenário, o desvario suaviza o fim. Muito obrigada e parabéns poeta"!

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  5. Maria Célia Marques, escreveu: -"O lirismo do amor e da solidão transparece no conto. O contraponto - passado e presente - o passado relacionado à impotência e à saudade da esposa, o presente ao momento da doença vivido pelos dois primos. A atmosfera de dor e de isolamento finda com o delírio da morte que chega com o reencontro com Luisinha. Lindo"
    !

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  6. Gilda M. figueiredo Nora escreveu:-"Orlando, poeticamente vc nos leva a rever Guimarães Rosa num contexto erótico, de desilusão e incerteza... Trama do amor...rs. Luisinha seduziu os corações inconscientemente e fez a sua escolha corajosa, Ribeiro alimentou a amargura da traição e Argemiro passivo, parece ter a sua válvula de escape no sonho. Bom que a desesperança não sobreviveu ao sonho. Gostei"!

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