quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

DOIDEIRA

Foto de Ronaldo Ayres.

Baseado no conto "A terceira margem do rio" do livro
 PRIMEIRAS ESTÓRIAS de Guimarães Rosa.



Doideira... doideira...doideira.

Foi o que todos pensaram, 
mas ninguém ousou falar.

O pai era homem de juízo, até que, 
certo dia, encomendou canoa.
A casa, no tempo, era próxima do rio.

No dia em que a canoa ficou pronta,
sem alegria nem tristeza,
sem fazer recomendação,
o pai encalçou o chapéu,
e deu um adeus .

A esposa, pálida:
“Cê vai, ocê fique, você nunca volte”.

Entrou na canoa e saiu se indo,
para aqueles espaços do rio,
sempre dentro da canoa, para dela,
não saltar nunca mais.

No começo, o filho cumpria de deixar,
na margem, comida furtada.
Dias depois, teve surpresa:
a mãe sabia, facilitava,
encobrindo de não saber.

O que o pai consumia, 
era só um quase, nem o bastável.

A esposa tentou,
queria que  seu homem desistisse da teima.
Mandou vir padre fazer reza. 
De outra, para medo, vieram dois soldados.
Tudo o que não valeu de nada.

Como ele aguentava?
Sol, aguaceiro, dia, noite.

A filha casou.
A mãe não quis festa.
Uns anos depois, já com filho, 
desistiu do  pai e se mudou. 
Muito depois, a mãe, 
já envelhecida, foi morar junto dela. 

Só ele ficou...o pai carecia. 


Quando já lhe apontavam 
uns primeiros cabelos brancos,
com um lenço, para o aceno ser mais,
foi lá, chamou  e esperou. 

O pai apareceu no longe, 
vulto sentado à popa.

O que viu o fez tremer.
O pai preto, de sol e dos pelos,
levantou o braço, feito um saudar.
Pareceu-lhe vir do além.

Por pavor, correu, tirou-se de lá.

Mais do que o fantasma,
 arrepiava-lhe a palavra que batia, 
insistente, em seu pensar:

Doideira... doideira...doideira.


3 comentários:

  1. A loucura abraçou-o, afetando toda família com a situação. Mas pouco sabemos o que se passa no interior do afetado.As vezes se manifesta de forma branda, e de outras o elemento se torna violento e perigoso. O barqueiro simplesmente se isolou, nada pedia , e nada exigia...apenas se afastou do conviver familiar e social. Gostei!

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  2. Nas suas andanças quando encontrava um despacho pelas encruzilhadas. Comia o frango bebia a cachaça e fumava o charuto e seguia sem rumo soltando sonoras gargalhadas...rsrs

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  3. Loucura, cansaço, apatia, desapego. Pior pra quem fica, encarcerados num hiato de quem enterra a alma mas perde um corpo que emerge de quando em vez, cutucando a consciência...

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